Conta de luz virou orçamento paralelo da União, diz ex-secretário de Minas e Energia
20/06/2022
Segundo Paulo Pedrosa, é preciso tirar do preço da energia
os custos de subsídios e políticas públicas
Com 36 anos de atuação na área de energia, o engenheiro
Paulo Pedrosa é conhecido no setor pela persistência em defender medidas que
possam reduzir a conta de luz.
Está em todos os debates sobre o tema, como presidente da
Abrace (Associação Brasileira dos Grandes Consumidores Industriais de Energia e
Consumidores Livres). Mas também se envolveu na questão nos cargos públicos em
que atuou, como diretor-geral da Aneel, a agência do setor, e
secretário-executivo do MME (Ministério de Minas e Energia).
Na sua avaliação, o teto de 17% a 18% no ICMS é bem-vindo,
mas precisa ser seguido por uma mudança estrutural.
"Na nossa visão, um movimento mais efetivo seria tirar
de dentro da conta aquilo que não deveria estar lá. São políticas públicas que
o consumidor não sabe que está pagando", afirma.
"A Abrace identificou que country clubs, os clubes
campestres, se beneficiaram de subsídios da área rural como se fossem
produtores rurais. Imagine a situação. O consumidor que está com dificuldade de
pagar a conta de luz da sua casa paga a conta do country club de um cara muito
mais rico."
Pedrosa defende que os custos de políticas sociais, de
desenvolvimento regional e política de incentivo a setores e empresas, que hoje
encarecem a conta de luz, deveriam ser transferidas para o Orçamento da União.
Em paralelo, diz Pedrosa, o Congresso precisa aprovar o
Projeto de Lei 414, que prevê a modernização do setor.
"O projeto cria os instrumentos para que o preço seja,
no futuro, formado no mercado, a partir da oferta e demanda, como já acontece
em outros países", afirma.
Que diferença faz o teto no ICMS para o consumidor de
energia elétrica?
Entendo que o Congresso deu prioridade para questão da
energia. Um movimento importante começou. É um passo que mitiga o custo, mas
não é o enfrentamento estrutural do problema.
Os tributos são cerca de 30% da conta de luz, quase um terço
do problema. Por que apenas mitiga?
Sim, é muito. No entanto, na nossa visão, um movimento mais
efetivo seria tirar de dentro da conta de luz aquilo que não deveria estar lá.
São políticas públicas que o consumidor não sabe que está pagando.
Esse movimento de tirar o que está escondido na conta de luz
é melhor do que diminuir imposto.
Primeiro, porque ao diminuir a conta de luz, automaticamente
está diminuindo o imposto, porque ele vai incidir sobre uma base menor.
Segundo, porque a redução do preço chega até o consumidor.
É preciso ter em mente que há dois caminhos para a redução
de impostos, o da conta de luz mais barata e o da produção nacional mais
barata. Os impostos muitas vezes são compensáveis nas cadeias produtivas. A
redução do imposto é boa para a produção. No entanto, não é tão importante para
o consumidor residencial.
Reduzir os custos que estão na tarifa, que têm natureza
tributária, porque fazem parte de políticas públicas, é o movimento mais
importante, e ele precisa vir a seguir.
Tira o custo da conta de luz e coloca onde?
No Orçamento. Do jeito que está, no fundo, a conta de
energia foi transformada quase num orçamento paralelo da União. Embute
políticas sociais, de desenvolvimento regional e política de incentivo a
setores e empresas, que obrigam o consumidor a comprar uma energia mais cara do
que ele precisaria.
O sr. pode dar exemplos de custos escondidos?
Estão na conta de luz subsídio para energia do carvão, que
acabou de ser renovado. É R$ 1 bilhão por ano.
O consumidor também subsidia irrigação e saneamento.
Subsidia as energias que nem precisam de subsídio porque hoje são as mais
baratas.
A gente pode chamar essas obrigações de cercadinhos VIPs.
Áreas protegidas. Nelas servem o melhor champanhe, o tira gosto especial, tem o
sofá mais macio. Todo cercadinho sempre começa com uma boa história, que até
parece justificável, e depois jogam a conta para os consumidores de energia
pagarem.
Veja o subsídio para área rural. A Abrace identificou que
country clubs, os clubes campestres, se beneficiaram dele como se fossem
produtores rurais. Imagine a situação. O consumidor que está com dificuldade de
pagar a conta de luz da sua casa paga a conta do country club de um cara muito
mais rico.
Mas como isso foi possível?
O country club se enquadrou como consumidor rural por estar
em área campestre.
Coisas assim precisam ser desmontadas. As escolhas do setor
de energia precisam ser mais transparentes.
Outro exemplo. Querem retomar Angra 3. Ela era um grande
prejuízo para a Eletrobras e foi desmembrada da empresa na privatização.
Queremos essa energia, se ela vai custar quatro vezes mais que fontes
renováveis? O consumidor quer dar subsídio para energia nuclear?
O consumidor também vai pagar o subsídio daquelas térmicas
chamadas de jabutis, que entraram no projeto da privatização da Eletrobras. A
lei mandou construir longe dos pontos de consumo, e elas vão exigir a
construção de gasodutos, para levar o gás até lá, a construção das próprias
termoelétricas, e das linhas de transmissão para trazer energia de volta aos
centros consumidores.
Todas essas escolhas que foram feitas, muitas delas no
Congresso, aumentam o custo da energia. A própria Empresa de Planejamento
Energético, a EPE, identificou que o país teria uma energia 30% mais cara.
Existem movimentos no Congresso tentando rever essas
térmicas. O sr. considera possível reverter?
Depois que você concede um privilégio, um subsídio, um
incentivo —e o setor elétrico tem histórico nisso— é quase impossível acabar
com eles.
A energia incentivada é mais um exemplo. Havia um prazo para
você apresentar um projeto nessa área. Até o último dia em que era permitido
aderir, foi apresentada uma quantidade gigantesca de projetos, que vão gerar
mais do que toda a capacidade de energia que o Brasil tem hoje, simplesmente
para tentar aproveitar ao máximo o subsídio. E já há movimentos para tentar
postergar esse prazo de adesão.
O sr. está falando dos subsídios a energias renováveis, como
solar e eólica?
Sim, desse subsídio que nem é mais necessário.
Por que não é mais necessário?
Lá atrás, era preciso ajudar as energias eólica e solar
porque eram muito caras. Jamais conseguiriam competir com as grandes
hidrelétricas e as térmicas. Assim, era preciso ajudá-las para que pudessem ter
espaço no Brasil.
As tecnologias de produção dessas duas energias avançaram
muito, e elas, que eram as mais caras, se tornaram as mais baratas. São viáveis
agora. No entanto, continuam recebendo subsídios.
É como se um brasileiro humilde tivesses crescido na vida,
arrumado um bom emprego, passasse a ter uma renda grande, uma casa, um
automóvel e a viajar para o exterior, mas, ainda assim, continuasse a receber
um bolsa família, por exemplo.
Retomando a discussão das térmicas jabutis, como sr. falou.
Voltou ao Congresso a discussão para tentar incluir em projeto de lei um jeito
de bancar o brasduto, o fundo que vai pagar a criação da rede de gasodutos.
Isso vai avançar?
Temos conversado com muita gente sobre isso e a percepção é
que, neste momento, não vai avançar. O deputado Fernando Coelho Filho (PE),
relator do projeto em que isso poderia entrar, está construindo um texto, com
consenso do setor, sem incluir isso. Não está contemplado até agora nenhuma
proposta ou emenda relativa ao que se chamou de brasduto, ou seja, fazer os
consumidores pagarem pela construção dos dutos.
O sr. está falando do projeto 414, certo? Poderia dar
detalhes para explicar por que ele é chamado de projeto de modernização do
setor elétrico?
Para nós, que atuamos no setor, ele traz a perspectiva de
correção do sinal de preço. A mãe e o pai de todos dos problemas do setor é a
precificação. O preço é definido por um programa de computador, e de certa
forma esse programa surtou.
Ele foi feito para representar o mercado quando as grandes
hidrelétricas dominavam, e não consegue mais representar o setor de hoje, com
outras fontes. O preço fica equivocado. Quando é preciso ligar as térmicas, por
exemplo, o consumidor paga por fora o gasto delas.
Então, o projeto cria os instrumentos para que o preço seja,
no futuro, formado no mercado, a partir da oferta e demanda, como já acontece
em outros países. Essa coisa, que é muito técnica, vai causar uma grande
mudança.
Corrigidas essa e outras distorções, o projeto conduz à
abertura de mercado.
Abertura de mercado em que sentido?
Todo mundo poderá comprar e vender energia, desde que assuma
o risco.
Vai ser como no mercado de ações. Qualquer um pode entrar na
Bolsa. Vai ficar feliz quando a ação subir. Se o preço da ação cair, ele sabe
que ninguém vai bancar esse prejuízo.
Hoje os prejuízos são compartilhados.
Para gente entrar no detalhe e o leitor entender. Alguém que
mora em São Paulo vai poder comprar energia da distribuidora do Rio Grande do
Norte, por exemplo?
É mais sofisticado que isso. O projeto separa duas coisas
importantes. De um lado, o fio, o poste, o transformador, ou seja, o caminho da
energia até a casa das pessoas. De outro, fica a energia em si.
Através dos fios das distribuidoras, será possível comprar a
energia produzida em qualquer lugar do país, sabendo que se está pagando as
duas coisas.
Vou redefinir a pergunta. Um consumidor em São Paulo, então,
poderá comprar energia eólica do Rio Grande do Norte, pagando a energia e o uso
de todos os fios que ligam o parque eólico até a casa da pessoa?
Sim. E também poderá comprar biogás do interior de Minas
Gerais ou energia solar do Piauí. Essa escolha será possível. Mas para que isso
ocorra, todo mercado precisa ser reorganizado —e o projeto trata desses
detalhes para que isso seja possível. Ou seja, avança na mudança estrutural que
defendemos para que a conta de luz seja mais barata.
RAIO X
Paulo Pedrosa, 60
Engenheiro mecânico pela UnB (Universidade de Brasília),
atua há 36 anos no setor de energia, com passagens por cargos públicos e nas
áreas empresarial e acadêmica. Presidente da Abrace (Associação Brasileira dos
Grandes Consumidores Industriais de Energia e Consumidores Livres), trabalhou
na Eletronorte e na Chesf, subsidiárias da Eletrobras. Foi diretor-geral da
Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), de 2001 a 2005,
secretário-executivo do MME (Ministério de Minas e Energia), de 2016 a 2018, e
ministro interino. Participou dos conselhos do ONS (Operador Nacional do Sistema),
de Itaipu Binacional e das distribuidoras Light e Cemar.
Fonte e Foto: Folha de São Paulo