Como o Brasil pode reduzir a pobreza no próximo governo, segundo Banco Mundial

03/08/2022


Passadas duas crises, há oportunidade para mudar políticas e melhorar a vida das famílias, diz instituição

                                            

Em um calhamaço de 155 páginas lançado em julho, o Banco Mundial —instituição financeira internacional que faz empréstimos para países em desenvolvimento— apresenta um combo de sugestões de políticas para reduzir a pobreza e a desigualdade no Brasil.

 

"A ideia é gerar conversações sobre as distintas reformas e mudanças de políticas que são necessárias no país, dado o contexto que o Brasil está vivendo, com os novos desafios da pandemia e os velhos desafios das desigualdades", diz Gabriel Lara Ibarra, economista sênior do Grupo de Pobreza e Equidade do Banco Mundial e responsável pelo relatório.

 

As sugestões vão desde programas de recuperação escolar pós-pandemia, passando por requalificação de trabalhadores, investimentos em infraestrutura e saúde, inclusão financeira e digital da população mais vulnerável, regularização fundiária, até uma otimização dos programas sociais, com a revisão de benefícios menos eficientes e adoção de uma metodologia oficial de definição de pobreza pelo país.

Segundo o Banco Mundial, o momento atual é estratégico para o Brasil, passadas duas crises —a recessão econômica de 2014-2016 e a pandemia—, e diante do novo ciclo de políticas públicas que deve ter início com o governo que começa em 2023.

 

A instituição lembra que o Brasil já fez isso uma vez: entre 2001 e 2011, o PIB per capita (soma de toda a riqueza produzida no país, dividida pelo número de habitantes, uma medida de desenvolvimento humano) cresceu 32%, enquanto a desigualdade diminuiu 9,4% e o percentual de pessoas vivendo na pobreza e extrema pobreza caiu pela metade.

 

Ibarra destaca a importância da ação do Estado para redução da pobreza e da desigualdade.

"É uma decisão inteligente para promover o desenvolvimento econômico não só do país, mas das famílias também", diz o economista mexicano, em entrevista à BBC News Brasil. "É necessário para gerar uma via sustentável de desenvolvimento econômico para as famílias que, por alguma razão, não têm tudo o que precisam para garantir um nível mínimo de bem-estar."

 

Confira 11 sugestões do Banco Mundial para reduzir a miséria e as iniquidades sociais no Brasil, no curto e no longo prazo.

 

1) ADOTAR PROGRAMAS DE RECUPERAÇÃO ESCOLAR

Diante do forte impacto da pandemia sobre a educação, o Banco Mundial diz que o Brasil deve adotar no curto prazo programas de recuperação escolar durante o período letivo e no contraturno (isto é, fora do horário de aulas regulares).

 

A instituição destaca a disparidade no acesso a atividades escolares durante a pandemia: enquanto 75,6% das crianças de lares mais ricos realizaram atividades escolares durante cinco dias da semana, somente 50% das crianças mais pobres tiveram a mesma frequência; e uma em cada cinco crianças de renda mais baixa não participaram de atividade escolar alguma nesse período.

 

"As perdas nas habilidades em português e matemática causadas pela pandemia já representam mais de um ano de aprendizagem perdida", observa o banco, que afirma que os professores precisam receber ferramentas para identificar o nível de aprendizagem de cada criança.

 

Além disso, os sistemas educacionais devem buscar ativamente os estudantes que abandonaram a escola e adotar estratégias para evitar novos abandonos.

 

2) APOIAR A REINSERÇÃO DAS MULHERES NO MERCADO DE TRABALHO

Apesar de a taxa de desemprego brasileira já ter voltado para níveis pré-pandemia (ela estava em 9,3% em junho, menor patamar para o trimestre desde 2015), as mulheres seguem com maior dificuldade de retornar ao mercado de trabalho, em comparação com os homens.

Em março, quando a taxa de desemprego no país estava em 11,1%, o nível de desocupação delas era 13,7%, comparado a 9,1% para eles —a diferença entre as taxas era então de 50,5%.

 

Neste cenário, o Banco Mundial destaca que o sistema de proteção social segue tendo papel crucial, especialmente para as mães solteiras e os lares mais vulneráveis.

 

Para apoiar a reinserção das mulheres no mercado de trabalho, a instituição diz que são necessárias políticas e programas que foquem especialmente nelas e nos setores onde as mulheres costumam se ocupar mais.

 

"Essas políticas e programas podem incluir o retreinamento de mulheres e subsídios para a recontratação, como feito, por exemplo, no Chile", diz o banco, destacando ainda a importância de assistência financeira e técnica para mulheres empreendedoras e autônomas, além de campanhas para aumentar a conscientização quanto à desigualdade no trabalho doméstico e de cuidado com dependentes, como crianças e idosos.

 

3) REFORMAR O SISTEMA DE APOIO AOS DESEMPREGADOS

Em 2019, antes da pandemia, apenas 17,7% dos desempregados brasileiros recebiam seguro-desemprego, bem abaixo da média de 37% dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), isso apesar de o país gastar o equivalente a 2,3% do PIB com programas voltados ao mercado de trabalho, acima do padrão internacional.

 

Assim, o Banco Mundial defende que é preciso reformar o atual sistema de apoio aos desempregados, estendendo a proteção aos trabalhadores autônomos e provendo serviços aos desocupados para evitar a deterioração das suas habilidades.

 

O banco também defende programas de incentivo à contratação de trabalhadores jovens e de baixa qualificação, como o Contrato de Trabalho Verde e Amarelo proposto pelo governo Bolsonaro.

 

Esse modelo de contratação, no entanto, foi muito criticado por entidades sindicais, que argumentavam à época que a proposta criava uma parcela de trabalhadores "de segunda classe", com menos direitos do que os demais.

 

4) AUMENTAR GASTOS COM EDUCAÇÃO E MELHORAR DIRECIONAMENTO

O Brasil gastava em 2018 o equivalente a 6% do PIB com educação, acima da média de 3,9% dos países de renda média-alta. Esses gastos, contudo, poderiam ser mais bem focalizados, defende o Banco Mundial.

 

A instituição sugere, por exemplo, que as regiões Norte e Nordeste deveriam ser priorizadas, com investimentos em infraestrutura, na formação docente e em gestão.

 

O banco também defende que as despesas com universidades federais deveriam ser revistas, já que em 2015, elas consumiam 0,7% do PIB, mas 65% dos estudantes destas instituições pertenciam aos 40% mais ricos da população.

 

A BBC News Brasil questionou o economista Gabriel Lara Ibarra, responsável pelo estudo, sobre qual exatamente é a proposta do Banco Mundial para as universidades federais, posto que o Brasil ainda tem somente 21% dos jovens adultos com ensino superior, comparado a média de 44% em países da OCDE, 40% na Argentina e 63% na Rússia, por exemplo.

 

E num momento em que a participação de negros e egressos do ensino público finalmente cresce nestas universidades, como resultado da política de cotas sociais e raciais.

"O ponto não é que as despesas educacionais no nível terciário deveriam ser mais baixas, mas que a destinação de recursos deve levar em conta a integralidade das despesas de educação", argumentou Ibarra.

 

"Os gastos têm que ser feitos de forma que os estudantes de todas as partes da distribuição de renda, incluindo famílias de renda mais baixa, possam beneficiar-se deles. Uma solução, por exemplo, seria um aumento dos recursos para os níveis educacionais mais baixos, permitindo que alunos vindos da escola pública no nível fundamental tenham melhor qualidade da educação e uma probabilidade mais alta de aceder às universidades públicas."

 

Adriano Senkevics, doutor em educação pela USP (Universidade de São Paulo), vê a sugestão do Banco Mundial de rever os gastos com as universidades federais com cautela.

 

"O que me incomoda nessa abordagem é que ela insiste numa oposição entre gasto com educação básica e educação superior, quando estamos mal nas duas dimensões, essa é a verdade", diz Senkevics.

 

"Temos uma população pouquíssimo escolarizada e, se a preocupação é com desigualdade, há um estudo do Marcelo Medeiros, Rogério Barbosa e Flavio Carvalhaes que mostra que o nível educacional que vai ter impacto sobre a desigualdade é o ensino superior."

 

O banco também defende a necessidade de melhorar a qualidade da educação, considerando que o desempenho dos alunos brasileiros no Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes) é sistematicamente inferior à média da OCDE.

 

Aqui, os especialistas sugerem medidas como a nomeação de diretores escolares e a bonificação de professores e funcionários a partir de avaliações de desempenho. Eles citam como exemplo o modelo do Ceará, de financiamento da educação baseado em resultados.

 

5) REQUALIFICAR TRABALHADORES

O envelhecimento e baixa qualificação dos trabalhadores exigirão um esforço de requalificação da mão de obra brasileira nos próximos anos, diz o Banco Mundial.

 

Os autores mostram essa necessidade em números: 95% dos trabalhadores pobres trabalham em ocupações com risco relativamente alto de automação; cerca de um terço dos brasileiros com 20 a 39 anos não concluíram o ensino médio e só 17% têm diploma de ensino superior; e a taxa de dependência (relação entre o número de crianças e idosos e a população em idade ativa) da economia brasileira deve subir dos atuais 45% para 67% até 2060.

"Há uma parcela importante da mão de obra brasileira que já saiu da escola tradicional, que já tem as habilidades definidas e o nível de educação que vão ter. Mas a dinâmica de automação e investimentos em novos setores, como a economia verde, vão exigir capacidades que esses grupos de trabalhadores não têm. Por isso é importante pensar como eles vão poder enfrentar essas mudanças do mercado do trabalho do futuro", diz Ibarra.

 

Segundo ele, é preciso envolver as empresas em esforços de requalificação de seus trabalhadores, com estímulos à formação técnica e profissional. Além disso, diante da redução constante da mão de obra agrícola, são necessários programas para ajudar os trabalhadores rurais a transitar para outros setores, sugere o Banco Mundial.

 

6) AMPLIAR INVESTIMENTO EM SAÚDE

Em 2017, um terço das famílias brasileiras gastaram mais de 10% do orçamento familiar em saúde, com medicamentos como a principal despesa paga do próprio bolso. Além disso, a cada ano, 10 milhões de brasileiros caem na pobreza por despesas com saúde, cita o banco.

 

Assim, uma política holística de combate à pobreza deve incluir o fortalecimento do sistema público de saúde, de forma a reduzir as despesas pagas pelas pessoas do próprio bolso.

 

7) AMPLIAR A INCLUSÃO FINANCEIRA E DIGITAL DA POPULAÇÃO DE BAIXA RENDA

O Brasil tem níveis de acesso a crédito e a contas bancárias superiores ao restante da América Latina e Caribe, mas esse acesso é bem menor para os 40% mais pobres, diz o banco. Além disso, só 32% dos brasileiros adultos conseguiram poupar dinheiro em 2017.

"A inclusão e a educação financeira criam a possibilidade de poupança, gerando um caminho mais sustentável para as finanças das famílias que estão na parte mais baixa da distribuição de renda", diz Ibarra.

 

"A ferramentas digitais reduzem o custo do acesso a produtos bancários e há muita facilidade hoje em dia, através dos aplicativos, para transações financeiras formais", cita o economista, destacando a bem-sucedida experiência do pagamento do auxílio emergencial através de contas digitais da Caixa Econômica Federal.

 

O Banco Mundial sugere que o Bolsa Família ou Auxílio Brasil também poderia ser atrelado a uma conta poupança dedicada. Mas alerta que é preciso programas para apoiar a inclusão digital das populações rurais e vulneráveis, já que o preço e a qualidade dos serviços de banda larga no Brasil são hoje fatores impeditivos para essas parcelas da população.

 

8) MELHORAR A REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

"Muitos estudos mostram que, quando os direitos de propriedade são claros e bem regularizados, os incentivos para cuidar, investir e produzir mais sobre uma determinada propriedade são muito maiores", diz o economista do Banco Mundial.

 

Segundo o estudo, cerca de 57% da população rural cronicamente pobre não possui registro formal de propriedade; metade do território registrado no Brasil tem registros sobrepostos; e os mais de 20 órgãos envolvidos na regularização fundiária no país não estão conectados.

 

Assim, o banco defende a simplificação e integração dos processos de cadastro de imóveis, além de um esforço de registro de terras estaduais e federais, com retificação ou cancelamento de registros equivocados.

 

"Uma reforma do processo de regularização fundiária, com sistemas melhor integrados, vai dar mais certeza aos direitos de propriedade para as famílias", afirma Ibarra.

 

9) AUMENTAR COMPETITIVIDADE E ABRIR O MERCADO

O Banco Mundial avalia que o modelo econômico brasileiro, baseado em uma indústria altamente protegida e exportações de commodities, está "exaurido".

Assim, a instituição defende que, para fortalecer o crescimento, é preciso acelerar mudanças estruturais, com o aumento da produtividade da indústria e do setor de serviços, diversificação das importações e aumento da participação do Brasil no comércio global.

 

O banco também defende a necessidade de o país retomar investimentos em infraestrutura e afirma que uma forma de fazer isso seria reduzir a vinculação de despesas no orçamento, gerando espaço para investimentos dentro do teto de gastos.

 

No entanto, o governo Jair Bolsonaro (PL) realizou diversas manobras para driblar o teto nos últimos anos e há uma expectativa de que um novo governo eventualmente mude a regra, que tem se mostrado de difícil cumprimento sob os moldes atuais.

 

10) USAR A POLÍTICA FISCAL PARA PROMOVER A IGUALDADE

A política fiscal diz respeito à arrecadação e aos gastos do governo. Aqui, o Banco Mundial faz duas sugestões principais: uma revisão dos programas sociais para destinar mais recursos aos gastos considerados mais eficientes e uma reforma tributária.

 

"Com os mesmos recursos poderíamos ter um impacto maior na pobreza ou até mesmo alguma poupança para fazermos mais investimentos nos serviços públicos", diz Ibarra.

 

A instituição destaca, por exemplo, os gastos com o Salário Família e o Abono Salarial, que por serem destinados a trabalhadores formais, beneficiam o meio da distribuição de renda, enquanto o Bolsa Família é considerado um gasto bem direcionado aos mais pobres.

 

O Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) chegou a sugerir em estudos recentes a fusão do Bolsa Família, Salário Família, Abono Salarial e da dedução por dependentes no Imposto de Renda da Pessoa Física, para criação de um "benefício infantil universal". A proposta foi vista com bons olhos por especialistas em desigualdade, mas não avançou.

 

O Banco Mundial defende ainda a simplificação dos impostos indiretos —aqueles aplicados sobre o consumo de bens e serviços— para um modelo de IVA (Imposto de Valor Agregado), adotado em muitos países da Europa.

 

Um dos modelos de reforma tributária discutido nos últimos anos ia justamente nessa linha, mas também não prosperou.

 

11) MELHORAR ESTATÍSTICAS E CRIAR MEDIDA OFICIAL DE POBREZA

Por fim, as últimas propostas do Banco Mundial para atacar a pobreza e a desigualdade tratam da produção de informação.

Melhorar a coleta de dados sobre as populações indígenas e quilombolas e fortalecer o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), com a incorporação pelo órgão de novas fontes de dados como registros administrativos, big data e GPS, estão entre as recomendações.

 

O banco destaca ainda que a recente elevação da linha de pobreza considerada para pagamento do Auxílio Brasil para R$ 210 é positiva, mas insuficiente, sendo necessária a adoção de uma metodologia oficial de medição de pobreza no país.

 

"Com uma metodologia analiticamente sólida é possível definir o custo de vida no país e quanto as famílias precisam para cobrir suas necessidades básicas. Isso pode então servir de ponto de referência para identificar as famílias que estão em necessidade de apoio monetário", diz Ibarra. "Não é um exercício fácil, nem uma solução final para a pobreza no país, mas isso é importante porque dá um ponto de referência para a política pública."

 

Fonte e Foto: Folha de São Paulo